Dor de Shopenhauer


Viver é ter vontade,
Vontade é sentir dor.
A falta vem da vontade,
Que aniquila o homem sofredor,
Sem saber que a falta dela,
É o caminho da verdade,
Da verdade interior.

Vento de infância

E lá vinha o nordeste,
O mais irritante dos ventos,
(meu pai dizia)
Vinha a galope sorrindo,
Raspando minha pele, ferindo.
E lá vinha o nordeste,
Embaraçando o cabelo comprido,
Balançando as ondas roliças,
Levantando areias preguiçosas,
Despejando pessoas idosas.
E lá vinha o nordeste,
Estragando pescarias,
Levando barracas e iguarias,
Assustando as marias-farinha,
Acabando com nossa alegria.
E lá vinha o nordeste,
Batendo em meu corpo sem covardia;
Encarava-o com total apatia,
Desprezava sua gargalhada,
Travávamos uma grande batalha.
E lá vinha o nordeste....

O que sei?

Não sei como sei,
muitas coisas que sei;
simplesmente sei delas,
e elas não sabem de mim.
Se as coisas soubessem como as sei,
perguntariam como sei;
mas como explicá-las com palavras
se nem com elas entendi o que sei ?
Vou tateando assim o que sei,
sem notar que tanto sei,
das coisas que pouco sei,
de outras que nada sei.

Fala Drummond!


Escreveu um dia o poeta
que poesia não é só escrever
os sentimentos do momento,
já que estes, todos têm,
e vários os descrevem bem.
Solucione poeta, minha agonia,
e decifre a sua sabedoria:
Dizei-me Drummond,
o que é escrever poesia?

Dor da criação

Isolo-me para ser outra,
Na hora da criação.
Entendo a tragédia humana,
Ardo em sua chama,
Atolo em sua lama,
Aceito sua condição.
É quando esqueço que existo,
E me despeço das paixões,
Nos momentos em que me visto,
Das dores das confissões.

Um Passarinho (um rabisco dos meus 13 anos)

Um passarinho na janela,
olhou-me encabulado.
Olhei-o com simpatia,
sabia-o preocupado.
Menina, posso me alojar aqui?
Aonde pequenino?
Bem aqui, na sua janela;
é que sempre a vejo aberta,
e você escrevendo,
escrevendo sem parar;
e de tanto escrever e jogar fora
as pontas do seu lápis,
aprendi a pegá-las e guardar.
Para quê?
Para o meu ninho,
pois que o antigo caiu da outra janela,
da janela do vizinho.
Bateu a janela tão forte na minha casa,
que caiu sem sobrar um tiquinho.
Mas essa janela, depois de muito olhar,
sei que posso ficar.
Primeiro, para escutar suas histórias,
depois, para contar-lhe as minhas.

Chave e fechadura

Dei-lhe a chave, lembra?
Fiquei a fechadura,
Que espera, esperou;
Enferrujou na viagem,
Das promessas que sobrou.

Pela fresta apertada,
Um pedaço de mar,
Uma vela partida,
Mentiras no ar.

Houve um compromisso,
De fuga ou de prazer;
algo terminado com ver, querer,
não me lembro.

Agora é esquecer.
Prisioneira das circunstâncias,
Impotente vivo nelas,
Sempre a olhar,
Pela fresta.

Bonifácio de Dante

Bonifácio, onde estás?
Por que não me responde?
Abri-lhe um canal e me jogaste longe,
por que Bonifácio?
Será que aí estás?
Na região mais sombria a que lhe dediquei?
E ainda assim te julgas grandioso,
como se o universo girasse no seu dorso?
Ou ainda o Papa da absolvição,
em troca de gratificação?
Por que Bonifácio?
Não sabias que sou poeta,
com poderes de profeta,
e veneno no coração?
Mas agora que estás no inferno,
desejo que queimes no fogo:
o mesmo, que ameaçaste meu corpo,
viu, Bonifácio?

Cada cousa não é o que é

Cada cousa é o que é se não pudermos transformá-la
E nada é o que é quando tudo se mascara
E nada basta, porque nunca bastará
O menino que me olhava
Não sabia o que sentia
Contornei seus olhos de anjo
Ausência de ser humano
Estranha vida sem dono
Encurtaram o caminho dos seus braços
Não haveria mais abraços
Fiquei em desordem
Precisava entender o que via
Senti paralisia
Quando se realmente vê,
as palavras somem.

Cansaço


O que me limita é esse cansaço
Cansaço das coisas bobas da vida
e das importantes não-vividas.
Cansaço de ter hora, de passar da hora, de viver sem hora.
Cansaço de saber o que é isto ou aquilo,
se fará sol ou chuva, se me arrisco ou fico parada.
Cansaço, puro cansaço.
Cansaço de ter mais sentimentos e menos sentidos.
Cansaço dos desentendimentos insuportavelmente longos,
dando ao tempo a responsabilidade de resolvê-los.
Coitado do tempo, esse velho senhor que tudo resolve quando passa e que às vezes passa e nada resolve.
Cansaço de ser avaliada sem critério, dessa onda de mistério.
Cansaço de não acreditar
Cansaço de mim mesma
Cansaço familiar – essa corrente umbilical que estica e afrouxa em um ioiô de sentimentos confusos.
Cansaço de ter que ser melhor, igual,
cansaço de ser menor.
Cansaço, tanto cansaço...
Cansaço de guardar na memória tudo o que não posso mais viver.
Cansaço que só não pode me tirar o ofício de escrever,
pois não saberia mais como viver.
Ah cansaço, um dia me levarás;
E aí, descansaremos.

Bastidores

Tornaste tão secundário
Quanto à platéia de uma tragédia grega
Coloco minha ira em cena
Aos deuses e a Sêneca.

És um ser de bastidor
Que dos dedos a cortina escorrega
Foste sempre um sofredor
Sem saber que na alma carrega.

Sofro a derrota triunfal
Do palco saio sem acenar
Atrás da Medéia sou normal
Deixo-te minha porção envenenar.

Para você que me lê


Não sou coisa intraduzível,
Muito menos convincente;
Não fiz faculdade de letras,
Meu português é deficiente.
Mas gosto das palavras,
E de pensar que, sem elas, não pensaria.
Não me encaixo em nenhuma categoria.

Escrevo palavras simples,
Fáceis, em sua grande maioria;
Pois a linguagem dos sentimentos,
É igual para os letrados,
E os endividados do saber.
Pode se aproximar e apropriar,
Cedo minha alma e minha história.
Sente em minha cadeira,
É igual à sua em algum lugar.
Meus sentimentos, com certeza, já foram sentidos pelos seus:
Já acertamos e erramos nas escolhas,
Fomos solidários e caímos no conto do vigário.
Nascemos inocentes, outras vezes indecentes e, por fim, coerentes.
Portanto veja:
Somos tão parecidos...
Pegue o lápis a sua frente,
Escolha um caderno diferente,
E verá que o poema surge do movimento, no momento
da beleza, da forma e do sofrimento.
Vamos, experimente.


Tissa

Quem me ensinou poesia
Não fui eu, mas ela
A menina que há muito já detinha
Tudo escrito dentro dela.

Por ela escalo morros
Navego por entre velas
Mas não permita Deus que eu fique
Muito tempo longe dela.

Minhas mãos ficam paradas
Esperando pelas mãos dela
Apelo para as velhas cantigas
Para ter minh’alma com ela.

Tipo à toa

Sou um tipo à toa
Sem fé nem escolha
Sem vigor nem raça
Sem cor
Sem graça.
Sou um tipo à toa
Que não desperta curiosidade
Às vezes muita vontade
Sem nenhuma sinceridade.
Sou um tipo à toa
Que vê barbaridades
E sonha felicidades
Que não sabe a que veio
E de tudo nada anseia.
Sou um tipo à toa.

Alexandra & Rasputin

Sinto-me por ti atraída;
Eu, Alexandra,
Tu, Rasputin.
Eu, crédula por ti,
Tu, absorto em mentir.
Não importa o falatório,
Acredito que tens o dom,
De supor o que é bom.
Mesmo no purgatório,
Serás me amado, meu rei;
Seja lá por qual motivo,
Contigo é que me enganarei.

Caminhos e atalhos

Se na vida há caminhos,
Onde se pode escolher,
Por que só encontro atalhos,
Mais longos a percorrer?

Se houvesse ao menos setas,
Indicando as portas certas,
Tentaria me lançar,
Dentro delas me encontrar.

Mas a vida assim não quis,
Destino fácil de achar,
Colocando-me em sua roda,
A grande roda do azar.


Adormecida

Minha curiosidade não tem limite,
sempre foi assim.
Em minha casa de menina,
tudo era, tudo podia, tudo poesia.
E dentro dessa casa um quarto,
E dentro desse quarto uma cama,
E nessa cama hoje, uma dama:
carinhosa,
sonhadora,
adormecida de vida.

África querida

Em nada haverá limite
quando sugado tudo do nada;
e nada se transformará em nada,
se tudo lhes for tirado.

Dos hediondos atos insanos,
brotará do pior e do ruim de tudo,
marcas de ódio e de sonhos perdidos,
andarilhos sem alma, náufragos do mundo.

E sem nada, já com tudo perdido,
e por tudo e apesar de tudo,
a crueldade reinará sozinha,
sangrando tudo, no meio do nada.

Na falta da palavra certa
que dará sentido ao que foi visto,
a palavra, surgirá do nada,
do horror que nela, fez-se muda.

Tocado Deus com tamanha loucura,
descerá dos céus e libertará os mortos,
e estes, paralisados e cegos de tudo,
já estarão perdidos pro retorno da vida.

Mas quais cegos dos olhos e sãos dos sentidos,
entrelaçarão seus braços em velhos corpos com vida,
e saberão que desses ventres nascerão outros membros:
sadios, descentes, inocentes ainda.

Lembranças

Minhas lembranças foram jogadas no canto escuro do quarto;
Nas páginas velhas dos livros;
Nos pensamentos proibidos.
Ficaram nas vielas da infância,
Que de tão cálidas lembranças,
Permanecem soltas como crianças.
Quisera eu resgatá-las e nelas permanecer;
Assim como uma voz que canta,
Que canta até o alvorecer.


Tonel de desejos

Tenho um tonel de desejos:
Alguns são servos, outros são amos.
Uns, sigo sem pensar,
Outros, vivo a buscar.
Quando não houver mais vassalos nem senhores,
E todas as distinções forem niveladas sem pudores,
Terei vivido meus desejos:
Sem cor, sem pátria, sem dores.

Traição

Traí, traí sim.
Mas fique tranqüilo, meu amor,
Não foste a ti que traí,
Mas sim, a mim.
Traí com o meu corpo,
E, sendo assim,
Traí pouco.
Afinal, o que é um corpo,
A não ser sentidos,
Muitas vezes desprovidos?
Traí, traí sim.
Mas fique tranqüilo, meu amor,
Não foste a ti que traí;
Traí minha alma,
Pois que o corpo meu amor,
Este, apenas sente,
Enquanto que alma,
A alma, ressente.
Traí e traí tão fundo,
Que a traição virou pecado;
E se é pecado amar,
Desculpe, meu amor,
Traí pecando.
Mas fique tranqüilo,
Não foste a ti....

Se eu fosse

Se eu fosse poeta
eu te daria,
minhas mãos,
meu olhar;
e quem sabe,
encarnado em mim,
entenderias,
como é duro te amar!

Se eu fosse poeta,
eu te daria,
as dores e as alegrias,
do meu peito angustiado;
e assim tu sofrerias,
o peso de ser,
tão mal-amada.

Ah, se eu fosse poeta,
aliviaria este coração,
por ti apaixonado,
e nessas linhas,
eu mentiria:
Que delícia,
sou amada!

Um lugar chamado infância

Muita rua mudou de nome.
Muita árvore sofreu mutilação.
Muita avenida virou contra-mão.
Na areia da praia há agora um calçadão.
No lugar do muro baixo da minha casa, vê-se um portão. Um portão e um cão.
Onde havia simplicidade, ergueu-se modernidade e muita solidão.
Foram tantas as mudanças que partiu meu coração.
E agora meu Deus, o que faço com tanta recordação?

Juras

Juro. Eu juro. Juro que tentei.
Comprei terninho, tailleur, sapato de marca e me maquiei.
Juro que tentei.
Tentei por quinze anos, não por perseverança e sim, como uma doença.
Mas tentei. Isso eu sei.
Tive mesa, faxineira, balanço de empresa e viajei.
Tentei tempo demais,
Perdi tempo demais,
Esse foi o meu erro,
Disso eu sei.
Agora é só alívio.
Dei adeus ao juramento e não tento ser mais ninguém além do que, no fundo, sempre serei.
Mas tentei.
Só não quis morrer tentando, por isso, jurei.
Novas juras, eu sei.
Não careço de excessos, apenas de reservas,
E como sei!
Hoje, me basta uma boa rede, um verde pra pensar e o mundo pra julgar.
Isso somente eu sei.
E jurei.

Bichos de pão

Era um pedacinho macio
Que tudo virava bicho
Fazia tudo com lentidão
Pra prender minha atenção.

Contemplava suas mãos pequenas
Razão de belos poemas
Poemas em forma de bicho
Bicho liso e bicho com pena.

Nascia do miolo do pão
Minha avó e sua imaginação
Conheci bichos esquisitos
Vigiava tamanha transformação.

Tento imitá-la aos meus filhos
Que riem dos bichos que faço
Gargalho e jogo na lembrança
Minha avó e minha infância.

O que serei

Ah, Nietzsche, Nietzsche,
dizei-me rápido e sem rodeios,
como pode alguém,
tornar-se o que é?

Foi puro devaneio,
ou a descoberta de um mundo inteiro?
Sabias desde o início,
ou foi mera idéia de um capricho?

Ah, Nietzsche, Nietzsche,
o que me tornarei se,
no fundo, já me neguei?
Dizei-me Nietzsche, o que serei?


Alguns anos

Tenho alguns anos e nada mais para contar.
Faço agora somente observar:
tudo o que vivi,
tudo o que virá.
Convivo com o Inevitável em minha sala de estar
e nem Dele tento evitar.
Ficamos assim...tomando chá;
mas se cochila e me dá uma chance,
vou à infância visitar.

Absinto


És o meu veneno
Tão amargo é o sentimento!
Por que tanto castigo
Contido em um só vidro?

És o meu tormento
Que me empurra contra o vento
Esperando o momento
Do meu enfraquecimento.

És minha amargura
Assassina da ternura
Deixando um sofrimento
Que corrói meus movimentos.

És minha melancolia
De tamanha agonia
Diluída no que sinto
Em teu cálice de absinto.


Mãos à toa

Não, não tive mãos à toa.
Abraçaram todos com euforia,
Apanharam o que me dava alegria,
Levantaram em momentos de fúria,
Abaixaram com gestos de ternura.
Mãos que sentiram a brisa dançante,
Fecharam de frio cortante.
Não, não tive mãos à toa.
Com elas, segurei meus dois amores,
Que delas, fazem abusos constantes.
Mãos que enxugaram lágrimas escondidas,
Escreveram palavras contidas.
Mãos que defenderam inocentes,
Empurraram indecentes.
Mãos que ainda imploram por carinho,
Mas sabem, que a qualquer momento,
Uma terá a outra.
Não, não tive mãos à toa.


Cheiro de vento

De onde sopra este vento,
que me envolve sereno?
Não, não diga teu nome,
fique perto, calado.
Conheço teu cheiro,
das noites molhadas...
Quero ter-te agora;
assuma o comando,
desse corpo cansado.
Pegue no flanco,
que lhe dê mais prazer,
enrole, me dobre,
sou um mar em você.

Cantos e contos

Escrevo tanto nos meus cantos,
Que dos cantos fez-se os contos,
Dos contos que tanto gosto,
Nos cantos que me encosto.
Nos contos há encontros,
Nos cantos, desencontros,
Contos que desabafo,
Cantos que me abafo.
Canto nos meus contos,
Cantos que me encantam,
Conto nos meus cantos,
Mentiras por entre prantos.

Carnaval

Salta do meu peito mascarado
e derrama tua mágoa nauseada
que te pesa no peito torturado
nessa vida repleta e maltratada.

Pula e canta falsa alegria
buscando força em tua fantasia
gargalha alto com euforia
recupera o ânimo sem covardia.

E nesses três dias de fartura
não pense nos outros trezentos de maldade
em que entregaste a alma, outrora pura,
nos braços de um amor sem liberdade.

Brinca sem tentar ser verdadeira
limpa tuas dores com morfina
pois voltará para mim na quarta-feira,
morta, doce, pele em cinzas.