Me vi escrevendo (Patricia Amorim)

um rabisco rupestre








É certo


Subirei um dia, é certo,

e, seja lá como for, não me larguem no cemitério,

mas me vistam de amarelo

Doem minhas tralhas para as associações disso ou daquilo

ou para o primeiro par de pés sem chinelo

Subirei um dia, é certo,

vestirei transparente sem ser indecente,

de pensamento aberto e alma deserta, serei

julgada pela vida de dores e sortes diversas, 

pelas sementes plantadas e pelos frutos indigestos

Subirei um dia, é certo,

e por aqui deixarei alguns rabiscos e uma saudade dispersa

Quero saborear do alto a paz de ver meus dois amores felizes,

e saber que dessa felicidade houve uma porção das minhas chatices;

e, caso não haja tempo para as desculpas, pedirei lá do alto

em tons de ternura, pois que fui apenas um ser humano

com erros e acertos como qualquer criatura

Subirei um dia, é certo,

e não levarei amarguras e nem gestos de bravura

No meu caderno de anotações, quero escrever apenas dois verbos - o que

fui e o que fiz - e tirar 10 com louvor ao conjugá-los ao Senhor 

Espero ter agradecido mais do que pedido e, se assim não for, que 

me dêem o castigo merecido, mas que seja leve para essa alma

já tão arrependida

Subirei um dia, é certo,

e terei assim todas as respostas que sempre indaguei, 

que nenhum livro me deu e explicação não obtive de ninguém

Sentirei outras leis da física, vou planar no ar,

estar aqui e acolá sem enjoar

Sairei dessa teia, desses limites físicos, desses desafios

emocionais e de outros tantos dilemas morais

Subirei um dia, é certo,

e confesso que carrego um receio de como será, mas que 

seja rápido e sem medo quando o dia raiar,

que minha carme não doa e que nem sangre à toa

Subirei, é certo





Silêncios



Há o silêncio surdo, que de tão cansado de escutar absurdos, entra em uma espécie de transe antipoluente auditiva;

Há o silêncio das palavras, alçando vôo para a mente, afogando em pensamentos, pesando o inconsciente;

Há o silêncio solidão, que guarda a palavra do dia, do mês, do ano, à espera de um ouvido bom;

Há o silêncio momento, em que é preciso um tempo, um sopro de vento, um esquecimento dos argumentos para colocar ordem na desordem;

Há o silêncio das perdas onde o próprio silêncio se corrói; 

Há o silêncio do ódio, que maltrata, enferruja, esfarela a alma;

Há o silêncio do trauma, que cala fundo, cola na alma gritando por estratégias de escapatória;

Há o silêncio guardado, que aguarda no cais o momento de zarpar;

Há o silêncio sentido, fininho em filetes de magoas, torrentes em lágrimas;

Há o silêncio inteligente, que se faz conveniente para seguir em frente;

Há o silêncio decepção, onde não há mais nada a fazer para desfazer;

Há o silêncio da desculpa, que só entende quem tem olhos para escutar;

Há o silêncio egoísta, que culpa os inocentes e se esconde covardemente;

Há o silêncio interior, feito de sublimes pensamentos a flutuar sem peso, onde nada busca e tudo é alcançado, eterno descobridor de si mesmo e, por isso, jamais passageiro





Por que me procuras, Senhor?


Por que me procuras, Senhor?

qdo me afasto dos Teus olhos amorosos e caio nas sombras do abandono

qdo em Ti deposito a culpa pelos meus vícios mais primários

Por que me procuras, Senhor?

se pela vaidade sou arrastada aos apelos materiais e por eles consumida sem freio e sem critério

qdo pela aparência sou seduzida enxergando mais corpos do que almas

Por que me procuras, Senhor?

se mal sei discernir a entrega sem cobrança,

a justiça sem vingança, a cólera sem rancor, o amor sem perdão

qdo em minhas palavras e decisões saem os arranhões mais profundos

na pele do meu irmão

Por que me procuras, Senhor?

e não desistes de extender Tuas mãos qdo não as vejo, em sussurrar palavras

qdo não as escuto, em corrigir meus passos qdo tropeço, e, mesmo Te negando,

Tu vens ao meu auxilio e me pegas no colo

Por que me procuras, Senhor?

 Fica comigo, Senhor


Fica comigo, Senhor

nas horas em que as palavras faltarem

Ajude-me a unir o que um dia o orgulho e a magoa separaram 

Fica comigo, Senhor

quando o pranto vier em explosão ou em gotas de emoção, e que nesses momentos eu possa encontrar as Tuas mãos

Fica comigo, Senhor,

dai-me a luz necessária para compreender e aceitar as Tuas certezas na corda bamba das minhas dúvidas

Fica comigo, Senhor

e não me deixe tropeçar nas mesmas pedras que me iludiram pelo brilho da ilusão, encontrando assim o Teu sorriso de que necessito para recomeçar

Fica comigo, Senhor

quando a ignorância impedir que eu entenda a responsabilidade dos meus atos, trazendo dor no peito e insegurança no meu caminhar

Fica comigo, Senhor

e não me abandones quando nada mais fizer sentido e a Tua chama em mim empalidecer. Quando não conseguir escutar Teus passos pela surdez da minha pequena fé

Fica comigo, Senhor

quando a cegueira for a mãe da visão e, mesmo trôpega e vacilante, eu possa enxergar as Tuas sandálias e, humildemente, calçá-las.

Fica comigo, Senhor


 Eis-me aqui, Senhor


Eis-me aqui, Senhor,

sua filha que se perdeu,

que precisou descer os vales

para te enxergar nas montanhas

Que amou sem critério

por desconhecer Teus mistérios

Eis-me aqui, Senhor, diante de Ti,

sem saber se me ajoelho, se danço,

se canto Aleluia ou se me calo

Eis-me aqui, Senhor,

sua filha que rasteja na pobreza do meu ego,

tão ignorante no meu saber

Que pediu para ser escutada

quando deveria apenas, escutar

Eis-me aqui, Senhor,

sua filha que chorou no lugar do riso

e que riu no lugar do pranto

Que sonhou sonhos negros, sonhos loucos,

sonhos belos

Que pisou em estradas tortas, 

estradas falsas, estradas tolas,

no afã de te encontrar

Eis-me aqui, Senhor,

sua filha desnudada, com medo, com sede,

que grita o Teu nome misturado ao meu e que,

confusa, me perco de mim

Eis-me aqui, Senhor,

Sua filha que Te suplica por mais tempo para me redimir,

para me esquecer no silêncio dos Teus ensinamentos,

escutar Teus sussurros mais gritantes e assim entender,

na minha pequenez, o poder da Tua dimensão

Eis-me aqui, Senhor, sua filha agradecida,

sabendo que mesmo não tendo pés para alcançá-Lo, 

nunca saístes do meu lado.


(24/04/24)


 Mudanças





As mudanças, sejam aquelas forçadas pela vida ou as espontaneamente escolhidas, sempre nos levam a grandes experiências. A primeira acontece quando saímos daquele ambiente agasalhado e aprazível para um mundo nebuloso e cobrador.

Gosto das mudanças que somam, fazem crescer e trazem sentido nessa viagem que nada mais é do que um autoconhecimento. Sim, mudamos para nos conhecer melhor. Mudamos de idéia, de sexo, de lugar, de sentidos, de sentimentos, de pessoas. Mudar é atravessar, é aceitar o que não foi combinado, é nos dificultar as respostas das perguntas de sempre. Mudar é, sobretudo, um ato de coragem que requer muita ação e algum medo. E tudo começa quando nos rendemos a um desejo. Desejar é o ato preliminar do movimento. Há que se lançar um olhar atencioso e preguiçoso ao objeto desejado, analisá-lo cuidadosamente para não tropeçar no deslocamento a frente. Mudar requer planejamento de tempo - se for rápido demais, desanda, se for vagaroso, se perde e se congela na vontade.

Aprendi que a mudança feita a dois requer uma atenção redobrada. É como um plano de negócios onde se avalia os riscos e as garantias. Alcançar a mudança do outro é uma tarefa incessante de observação da alma, do pensamento, das atitudes, do silêncio e das palavras. É, em algumas situações, entender que o movimento é só seu e que não deve estar atrelado ao do outro. Perceber a mudança com o outro e do outro é saber que não há perdas, mas outros ganhos.

Mudar, afinal, traz algo de mágico, um quê de esperança na inércia, uma sobriedade diante da embriaguez da incerteza. É, sem dúvida, uma batalha que engrandece. É transformadora. Deixa pra traz o que ficou apertado e te convida a experimentar outros figurinos sem que se perca o fio da essência. É um ato de fé, de saber que fizemos o melhor, mas que ainda há muito por fazer.

2020 - as novas roupas quando o mundo parou


 

  




      Acordo. Observo ao redor sem saber se a roupa do dia será de desânimo ou de alegria. Os dias seguem assim – ora oração, ora reclamação. Levanto com meu pijama sem nome e paro, como de costume, no meu oratório. As conversas passaram a ser tão longas que se fez necessário a encomenda de um genuflexório. O marceneiro, um senhor esguio e muito católico, comovido pela urgência das minhas conversas com o Divino, confeccionou meu pedido em admiráveis dois dias. E assim, me ajoelho em respeito aos santos e anjos que ali me guardam, e peço, canto e escuto a belíssima prece escrita por Fernando Pessoa na voz da Maria Bethânia. Choro. Sempre choro quando rezo. Minha fé, sempre inabalável, nunca esteve tão próxima; e minha casa, meu templo sagrado. Os cheiros que nela imprimi, continuam, mas os dos amigos, sumiram. 

     Meu repertório musical nunca esteve tão oscilante. As vezes acordo com um flanco engraçado onde só cabe Martinália e afins; outros dias, me visto de linho branco e passo o dia tomando chá de boldo com os anjos em uma linda sala envidraça ao som dos cânticos gregorianos. 

    Penso que viver é um pouco mais do que simplesmente continuar tentando. Meu crescimento sempre fora feito de remorsos, mas nesses tempos incertos, ganhou um certo sofrimento e muito reconhecimento. Inexplicavelmente os dias voam como lampejos enlouquecidos. Invento sotaques diferentes para ser múltipla, troco as cores das paredes dos quartos, mudo os quadros de lugar, arrumo as roupas já arrumadas e fujo como nunca das perguntas que me desconectam de alguma certeza que já tive. Somos um grão de poeira feitos de arrogância e de medo. Mas sigamos, pois somos seres deslumbrantes de diversas maneiras.

    Olho pela janela. O tempo é uma ideia que só existe quando o desejo acaba. Sim, sou uma mentirosa que não menti e que deseja fugir sem sair de casa. Fugir da saudade de mim. Abro o armário. As roupas me espreitam. Oxalá hoje me vista de gratidão.