2020 - as novas roupas quando o mundo parou


 

  




      Acordo. Observo ao redor sem saber se a roupa do dia será de desânimo ou de alegria. Os dias seguem assim – ora oração, ora reclamação. Levanto com meu pijama sem nome e paro, como de costume, no meu oratório. As conversas passaram a ser tão longas que se fez necessário a encomenda de um genuflexório. O marceneiro, um senhor esguio e muito católico, comovido pela urgência das minhas conversas com o Divino, confeccionou meu pedido em admiráveis dois dias. E assim, me ajoelho em respeito aos santos e anjos que ali me guardam, e peço, canto e escuto a belíssima prece escrita por Fernando Pessoa na voz da Maria Bethânia. Choro. Sempre choro quando rezo. Minha fé, sempre inabalável, nunca esteve tão próxima; e minha casa, meu templo sagrado. Os cheiros que nela imprimi, continuam, mas os dos amigos, sumiram. 

     Meu repertório musical nunca esteve tão oscilante. As vezes acordo com um flanco engraçado onde só cabe Martinália e afins; outros dias, me visto de linho branco e passo o dia tomando chá de boldo com os anjos em uma linda sala envidraça ao som dos cânticos gregorianos. 

    Penso que viver é um pouco mais do que simplesmente continuar tentando. Meu crescimento sempre fora feito de remorsos, mas nesses tempos incertos, ganhou um certo sofrimento e muito reconhecimento. Inexplicavelmente os dias voam como lampejos enlouquecidos. Invento sotaques diferentes para ser múltipla, troco as cores das paredes dos quartos, mudo os quadros de lugar, arrumo as roupas já arrumadas e fujo como nunca das perguntas que me desconectam de alguma certeza que já tive. Somos um grão de poeira feitos de arrogância e de medo. Mas sigamos, pois somos seres deslumbrantes de diversas maneiras.

    Olho pela janela. O tempo é uma ideia que só existe quando o desejo acaba. Sim, sou uma mentirosa que não menti e que deseja fugir sem sair de casa. Fugir da saudade de mim. Abro o armário. As roupas me espreitam. Oxalá hoje me vista de gratidão.

 

Nós da vida


Não espero nada dos amigos,
apenas a sorte de tê-los comigo.
Não espero nada dos familiares,
a não ser a paz em seus olhares.
Mas espero da lembrança,
sempre rica em cobrança,
momentos de branca lucidez;
trago junto toda a insensatez,
carrego momentos de morbidez;
são poucos, eu sei.
Lembro dos beijos que não dei,
dos abraços pelos quais esperei,
das desculpas que não escutei;
são os nós da vida, já falei.
Uns, têm laços de fita de cetim,
outros, barbantes baratos de botequim.
Importantes ou não,
todos têm o seu nó,
que o tempo vira pó.

A astronauta


Quando criança, transbordava em criatividade e determinação: seria astronauta. As pessoas riam. Ficava confusa: adulto tem algo de desordenado. Queria ver as estrelas de perto e a Terra de longe. Nada mais real e distante.

A Visita


Todos dormem na casa da praia
E eu recebo aqui na sala
O filho de Deus.
A luz baça se incendeia em clarão
É Ele que brilha em Seus elétrons
Muito mais que dez sóis.
Falo-lhe de minha família que dorme
Ele sorri - que durmam
Falo-lhe de José e Maria
Tão lindos no filme de Zefirelli
Ele sorri - agradecido
Falo-lhe da criação do Seu Pai:
A Natureza - falo do sol, da praia,
Da angra serena que ali está
Há tantos milhões de anos
Ele sorri - feliz
Falo da vida, dos sonhos, da fé
Ele sorri - ainda
Aí falo dos homens, das guerras
Que não param, ora aqui, ora ali
Falo das usinas nucleares, ogivas,
Falo de tantos sem nada, outros com tanto
Falo de palácios e barracos
De suítes e de quartos de empregadas
Falo de dietas de baixa caloria e da fome total.
Falo de secas e de enchentes
Falo de segurança, falo de petróleo
Falo de álcool e de vinhoto
Nos rios e lagoas - falo da produção
E do supérfluo,
E aí,
Ele estende Seus dedos para que me cale
E sorri - com lágrimas nos olhos.

Uma rede na parede

Entrei pela porta dos fundos. Era uma casa modesta. Ao final do corredor havia uma sala. Uma sala com uma rede de pescador. Uma rede de pescador presa à parede no final do corredor. Na rede havia estrelas do mar, Iemanjá e cavalo marinho. Tudo junto com cheiro de maresia. Fiquei encantada com tamanha imaginação.

Verde e Branco



Minha mãeum grito ao telefone. Susto.
Olho no corredor. Minha mãe chora.
Desliga e sorri aliviada. Confusão.
Depois diz: seu pai comprou a casa. Diversão.

Para alguém que não conheço


Quero brincar de esconde-esconde
Pegar suas roupas emprestadas
Dizer que amo seus pés
Sentar no chão do banheiro enquanto você toma banho
e massagear seu pescoço e beijar seu rosto
Segurar sua mão e sair para andar
Não ligar quando você comer a comida que acabei
de fazer para mim
Te encontrar numa lanchonete para falar sobre o dia,
sobre o seu dia e rir da sua, da nossa paranóia
E te dar cds que você não ouve, ver ótimos filmes, ver
filmes horríveis.


Espere por mim morena

Foi um verão diferente, daqueles que fica pra sempre. Uma moto entrou na cidade despertando curiosidade. A moto silenciosa e eu indiferente. Era tudo preto: o capacete, a roupa e o violão ao lado. Assustei-me com o homem da moto que parou para dar passagem. Tirou seu capacete preto e vi um homem bonito, já feito na vida. Seus olhos, de um azul transparente, casaram com os meus, trazendo emoções diferentes. Perguntou meu nome. Patrícia, respondi suada. Menina bonita com nome bonito, escutei calada. Acanhada, atravessei a rua agradecida em direção aos amigos que esperavam aborrecidos. Virei para olhar o homem bonito que me observava como se seu rumo houvesse perdido. Onde eu estivesse, aquela moto passava sem pressa, me olhando com olhos de mar e um sorriso de parar para pensar. Sentada na areia da praia, numa tarde nublada, senti a presença do homem da moto com o olhar em mim fixado. Pegou seu violão calado e tocou Espere por mim morena.Olhou-me sorrindo: vou me congelar para te esperar. Sorri de volta e o homem bonito caiu na estrada para nunca mais voltar. Tive vontade de conhecer o desconhecido que deixou um vazio no meu caminho; um caminho de mistério e magia que apenas pertencia à mulher que um dia me tornaria. Quando escuto àquela canção logo imagino que o homem bonito da moto preta e olhar de mar virá me buscar, será?


http://youtu.be/WQrA2UojTtQ

FICA

Fica, se te interessa. Nada tenho, nada posso oferecer, nem sequer emprestar; mas posso me doar. Fica. Entre nessa casa de areia, pise nesse chão agreste, abrigue-se no lado onde o sol demora e deite em minha estrela celeste. De bens materiais nada poupei, pois não sou boa em juntar coisas que as mãos podem tocar. O que acha? Fica. Às vezes me recolho pra esquecer a parte que dói em minha alma, depois me deito pra ver o dia raiar e pintar o que sobrou de amarelo. E então....fica? Gosto da dramaturgia e apelo para ela sem pensar, mas não se preocupe, é somente a atriz querendo interpretar, fugir do estado quase sempre penoso que é o de ser o que se é. Fica. Sou ébrio do vinho, do mais barato que houver, e após me entorpecer com sua cor elegante e sentir que por ela as palavras se soltaram sem me olhar, aproveite esse momento, navegue no meu outro lado, namore meus versos pobres, entenda tudo o que não foi possível permanecer por aqui. Fica.

MAPALU


Foi assim: meu pai, pescador por instinto, construiu um barco tão grande que cabia o céu, as estrelas e o infinito. Olhei aquele gigante branco com nome de gente: Ma-pa-lu, iniciais de Márcia, Patrícia e Lucia. Era uma família inteira dentro de um barco de madeira. Barco pra peixe grande: de salmão a cação, de cavala a pescada, todos de boca aberta pra virar refeição. Era barco de respeito, todo cromado, que só seria governado por um capitão e seu imediato.
Nas ondas do mar naveguei com meu pai sempre ao lado. De sua boca saia tanta sabedoria que ficava arrepiada. Virei sua maruja, sua mais fiel coruja. Tomava conta das noites e dos dias de calor, sempre atenta as suas mudanças de humor. Seja humilde, bem humilde, porque sou bem maior – o mar me soprava em cada onda que passava.
Bombordo é o lado do coração e boreste o lado da razão. A proa é como um bebê que começa a andar: sempre para frente ; já a popa é o lugar do medo, quando recuamos, andamos para trás, lá atrás. Uma milha náutica equivale a 1,85 quilômetro. A velocidade dos ventos é dada em nós, medida equivalente à milhas náuticas por hora. Agora responda: 25 nós representa quantos quilômetros por hora? Corria para o papel e respondia: 46 km/h? Ninguém haverá de encontrar maruja mais esperta como essa!, meu pai dizia.
Havia relatórios regulares de longitude e latitude, tudo muito complicado, mas não para minha cabeça fresca, sempre atenta a todos os cuidados. Vislumbrei, durante anos, as mais belas criaturas que o mar poderia gerar. Voei com as gaivotas, mergulhei com as baleias, balancei com a ventania. Meu pai era o meu capitão, meu timão, meu ar, e acima de tudo, o homem que me apresentara ao mar.
À medida que avançávamos, meu pai se viu obrigado a recrutar pescadores: homens fortes com a pele tão grossa como um casco de uma tartaruga idosa. E, de repente, virei a mascote, a que tinha que ser protegida e alimentada, posição que amargurava calada. E, de repente, virei menina-mulher e já não podia mais andar de biquíni e nem à vontade perto dos olhos dos pescadores de short. Passaram a me olhar vagarosamente, debilmente, como algo novo, com vários contornos.
Vi meu pai partir e eu ali: culpando meu corpo que não estava nem aí. Não podia mais me expor aos olhos do homem-pescador.
Foi difícil aceitar a condição de maruja aposentada, fui exilada da fonte que levava e trazia meus sonhos. Fiquei inconsolável, até o dia em que um rapaz passou por mim despertando um interesse amável. Meu pai deu chilique, não gostou, mas só assim ficamos quites. Foi assim.

“Il y a les vivantes, les morts et le marins”
("Existem os vivos, os mortos e os marinheiros)
Victor Hugo

Anacoreta



Serei uma anacoreta

Um apêndice de uma igreja absoleta

Jejuarei minha alma das aflições

E ao silêncio dos ermitões.

Vestirei-me de burel

E oscilarei, entre o inferno e o céu.

Meio assim


Hoje estou
meio cansada
meio reflexiva
meio de saco cheio
meio morta
meio viva
meio-termo.
E talvez fique assim
até a meia noite
ou até o meio dia
sentada nesse meio-fio
das minhas indecisões
dentro desse meio-corpo
analisando o meio-de-campo
das minhas marcações.
E, caso não encontre alguém
nesse meio-tempo
disposto a escutar
coisas que nos deixam assim
meio cabisbaixas e meio comovidas,
ficarei aqui esperando
nessa meia luz
o clarão aparecer
no meio desse meio-luto
próprio das pessoas que andam assim...
Pelo meio.

Contra o vento


Onde porei meus olhos para que não veja a nascente que deságua meu tormento?

Em que parte te colocarei no pensamento para que eu descanse na outra parte onde não esteja?

Não sei como enganar quem desejo

Fico óbvia demais ao olhar-te contra o vento

Passam dias, meses, passam anos

E quanto mais longe fica, mais te vejo!

Desilusão


Vejo o tempo passar
nas horas, nos dias,
no meu rosto envelhecido.
Arrasto meus pés tortos
sem saber pra onde vão
muito menos se existo.
Meus caminhos são cinzentos,
escuros tormentos,
vazios em acontecimentos.
Não há luz nem gentileza,
sou uma ferida de tristeza.
Já não me sinto
e nem insisto em saber
se virei decepção.
E assim, me espanto
em me ver aqui de pé,
e caída, por dentro.

Ó poderes irônicos dos céus!
Tenho a vida e dela o mais puro mel!
Mas não soube tirar proveito certo,
arando vales e dias desertos.
Mas hei de vê-la um dia onde nela fui cega,
deitando meu olhar em seu jardim de inverno,
e secarei meus olhos de suas chuvas eternas – ó vida bela!

Felicidade é uma borboleta

A felicidade não me pertence
Pertence a outro,
que não me pertence.
Borboleteia,
Pousa.
Desperto,
Olho mais perto:
Voa,
Voa...
Pousa em minha alma,
Faz cócegas,
Esqueço dentro.
Voa.
Pousa em outro ombro,
Fico atenta.
Mero engano.
Voa,
Como voa....

Ser depois


Perdoe-me,
mas o poeta não nasce poeta.
O poeta apenas nasce
e depois, se poetiza.
Ressuscita a palavra cantando,
batendo, insistindo presença
na dor, no amor;
em seguida cuspida, pesada,
cortada e lapidada.
Perdoe-me,
mas ser poeta é ver com olhos
ao nascer, e não antes de.
É desconhecer a palavra,
ser concebido por ela,
e desabrochar depois dela.
É dançar a mente,
arrumá-la constantemente,
como vício permanente.
Perdoe-me,
mas ser poeta,
é não parir sem ter gerado,
é saber-se dom depois do som,
é não dizer sem ter sentido,
e não sentir sem ter vivido.
Perdoe-me,
mas ser poeta, é ser depois.

Dor de Shopenhauer


Viver é ter vontade,
Vontade é sentir dor.
A falta vem da vontade,
Que aniquila o homem sofredor,
Sem saber que a falta dela,
É o caminho da verdade,
Da verdade interior.

Vento de infância

E lá vinha o nordeste,
o mais irritante dos ventos,
meu pai dizia
Vinha a galope sorrindo,
raspando minha pele, ferindo.
E lá vinha o nordeste,
embaraçando o cabelo comprido,
balançando as ondas roliças,
levantando areias preguiçosas,
despejando pessoas idosas.
E lá vinha o nordeste,
estragando pescarias,
levando barracas e iguarias,
assustando as marias-farinha,
acabando com nossa alegria.
E lá vinha o nordeste,
batendo em meu corpo sem covardia;
encarava-o com total apatia,
desprezava sua gargalhada,
travávamos uma grande batalha.
E lá vinha o nordeste....