MAPALU


Foi assim: meu pai, pescador por instinto, construiu um barco tão grande que cabia o céu, as estrelas e o infinito. Olhei aquele gigante branco com nome de gente: Ma-pa-lu, iniciais de Márcia, Patrícia e Lucia. Era uma família inteira dentro de um barco de madeira. Barco pra peixe grande: de salmão a cação, de cavala a pescada, todos de boca aberta pra virar refeição. Era barco de respeito, todo cromado, que só seria governado por um capitão e seu imediato.
Nas ondas do mar naveguei com meu pai sempre ao lado. De sua boca saia tanta sabedoria que ficava arrepiada. Virei sua maruja, sua mais fiel coruja. Tomava conta das noites e dos dias de calor, sempre atenta as suas mudanças de humor. Seja humilde, bem humilde, porque sou bem maior – o mar me soprava em cada onda que passava.
Bombordo é o lado do coração e boreste o lado da razão. A proa é como um bebê que começa a andar: sempre para frente ; já a popa é o lugar do medo, quando recuamos, andamos para trás, lá atrás. Uma milha náutica equivale a 1,85 quilômetro. A velocidade dos ventos é dada em nós, medida equivalente à milhas náuticas por hora. Agora responda: 25 nós representa quantos quilômetros por hora? Corria para o papel e respondia: 46 km/h? Ninguém haverá de encontrar maruja mais esperta como essa!, meu pai dizia.
Havia relatórios regulares de longitude e latitude, tudo muito complicado, mas não para minha cabeça fresca, sempre atenta a todos os cuidados. Vislumbrei, durante anos, as mais belas criaturas que o mar poderia gerar. Voei com as gaivotas, mergulhei com as baleias, balancei com a ventania. Meu pai era o meu capitão, meu timão, meu ar, e acima de tudo, o homem que me apresentara ao mar.
À medida que avançávamos, meu pai se viu obrigado a recrutar pescadores: homens fortes com a pele tão grossa como um casco de uma tartaruga idosa. E, de repente, virei a mascote, a que tinha que ser protegida e alimentada, posição que amargurava calada. E, de repente, virei menina-mulher e já não podia mais andar de biquíni e nem à vontade perto dos olhos dos pescadores de short. Passaram a me olhar vagarosamente, debilmente, como algo novo, com vários contornos.
Vi meu pai partir e eu ali: culpando meu corpo que não estava nem aí. Não podia mais me expor aos olhos do homem-pescador.
Foi difícil aceitar a condição de maruja aposentada, fui exilada da fonte que levava e trazia meus sonhos. Fiquei inconsolável, até o dia em que um rapaz passou por mim despertando um interesse amável. Meu pai deu chilique, não gostou, mas só assim ficamos quites. Foi assim.

“Il y a les vivantes, les morts et le marins”
("Existem os vivos, os mortos e os marinheiros)
Victor Hugo

Anacoreta



Serei uma anacoreta

Um apêndice de uma igreja absoleta

Jejuarei minha alma das aflições

E ao silêncio dos ermitões.

Vestirei-me de burel

E oscilarei, entre o inferno e o céu.

Meio assim


Hoje estou
meio cansada
meio reflexiva
meio de saco cheio
meio morta
meio viva
meio-termo.
E talvez fique assim
até a meia noite
ou até o meio dia
sentada nesse meio-fio
das minhas indecisões
dentro desse meio-corpo
analisando o meio-de-campo
das minhas marcações.
E, caso não encontre alguém
nesse meio-tempo
disposto a escutar
coisas que nos deixam assim
meio cabisbaixas e meio comovidas,
ficarei aqui esperando
nessa meia luz
o clarão aparecer
no meio desse meio-luto
próprio das pessoas que andam assim...
Pelo meio.

Contra o vento


Onde porei meus olhos para que não veja a nascente que deságua meu tormento?

Em que parte te colocarei no pensamento para que eu descanse na outra parte onde não esteja?

Não sei como enganar quem desejo

Fico óbvia demais ao olhar-te contra o vento

Passam dias, meses, passam anos

E quanto mais longe fica, mais te vejo!

Desilusão


Vejo o tempo passar
nas horas, nos dias,
no meu rosto envelhecido.
Arrasto meus pés tortos
sem saber pra onde vão
muito menos se existo.
Meus caminhos são cinzentos,
escuros tormentos,
vazios em acontecimentos.
Não há luz nem gentileza,
sou uma ferida de tristeza.
Já não me sinto
e nem insisto em saber
se virei decepção.
E assim, me espanto
em me ver aqui de pé,
e caída, por dentro.

Ó poderes irônicos dos céus!
Tenho a vida e dela o mais puro mel!
Mas não soube tirar proveito certo,
arando vales e dias desertos.
Mas hei de vê-la um dia onde nela fui cega,
deitando meu olhar em seu jardim de inverno,
e secarei meus olhos de suas chuvas eternas – ó vida bela!

Felicidade é uma borboleta

A felicidade não me pertence
Pertence a outro,
que não me pertence.
Borboleteia,
Pousa.
Desperto,
Olho mais perto:
Voa,
Voa...
Pousa em minha alma,
Faz cócegas,
Esqueço dentro.
Voa.
Pousa em outro ombro,
Fico atenta.
Mero engano.
Voa,
Como voa....

Ser depois


Perdoe-me,
mas o poeta não nasce poeta.
O poeta apenas nasce
e depois, se poetiza.
Ressuscita a palavra cantando,
batendo, insistindo presença
na dor, no amor;
em seguida cuspida, pesada,
cortada e lapidada.
Perdoe-me,
mas ser poeta é ver com olhos
ao nascer, e não antes de.
É desconhecer a palavra,
ser concebido por ela,
e desabrochar depois dela.
É dançar a mente,
arrumá-la constantemente,
como vício permanente.
Perdoe-me,
mas ser poeta,
é não parir sem ter gerado,
é saber-se dom depois do som,
é não dizer sem ter sentido,
e não sentir sem ter vivido.
Perdoe-me,
mas ser poeta, é ser depois.

Dor de Shopenhauer


Viver é ter vontade,
Vontade é sentir dor.
A falta vem da vontade,
Que aniquila o homem sofredor,
Sem saber que a falta dela,
É o caminho da verdade,
Da verdade interior.

Vento de infância

E lá vinha o nordeste,
o mais irritante dos ventos,
meu pai dizia
Vinha a galope sorrindo,
raspando minha pele, ferindo.
E lá vinha o nordeste,
embaraçando o cabelo comprido,
balançando as ondas roliças,
levantando areias preguiçosas,
despejando pessoas idosas.
E lá vinha o nordeste,
estragando pescarias,
levando barracas e iguarias,
assustando as marias-farinha,
acabando com nossa alegria.
E lá vinha o nordeste,
batendo em meu corpo sem covardia;
encarava-o com total apatia,
desprezava sua gargalhada,
travávamos uma grande batalha.
E lá vinha o nordeste....

O que sei?

Não sei como sei,
muitas coisas que sei;
simplesmente sei delas,
e elas não sabem de mim.
Se as coisas soubessem como as sei,
perguntariam como sei;
mas como explicá-las com palavras
se nem com elas entendi o que sei ?
Vou tateando assim o que sei,
sem notar que tanto sei,
das coisas que pouco sei,
de outras que nada sei.

Fala Drummond!


Escreveu um dia o poeta
que poesia não é só escrever
os sentimentos do momento,
já que estes todos têm,
e vários os descrevem bem.
Solucione poeta minha agonia,
e decifre a sua sabedoria:
Dizei-me Drummond,
o que é escrever poesia?

Dor da criação

Isolo-me para ser outra
na hora da criação.
Entendo a tragédia humana,
ardo em sua chama,
atolo em sua lama,
aceito sua condição.
É quando esqueço que existo
e me despeço das paixões,
nos momentos em que me visto
das dores das confissões.

Um Passarinho (um rabisco dos meus 13 anos)

Um passarinho na janela
olhou-me encabulado;
olhei-o com simpatia,
sabia-o preocupado.
Menina, posso me alojar aqui?
Aonde pequenino?
Bem aqui, na sua janela;
é que sempre a vejo aberta,
e você escrevendo,
escrevendo sem parar;
e de tanto escrever e jogar fora
as pontas do seu lápis,
aprendi a pegá-las e guardar.
Para quê?
Para o meu ninho,
pois que o antigo caiu da outra janela,
da janela do vizinho.
Bateu a janela tão forte na minha casa
que caiu sem sobrar um tiquinho.
Mas, essa janela, depois de muito olhar,
sei que posso ficar;
primeiro para escutar suas histórias,
depois, para contar-lhe as minhas.

Chave e fechadura

Dei-lhe a chave, lembra?
Fiquei a fechadura,
que espera, esperou;
enferrujou na viagem
das promessas que sobrou.

Pela fresta apertada
um pedaço de mar,
uma vela partida,
mentiras no ar.

Houve um compromisso
de fuga ou de prazer;
algo terminado com ver, querer...
não me lembro.

Agora é esquecer.
Prisioneira das circunstâncias,
impotente vivo nelas,
sempre a olhar,
pela fresta.

Bonifácio de Dante

Bonifácio, onde estás?
Por que não me responde?
Abri-lhe um canal e me jogaste longe,
por que Bonifácio?
Será que aí estás?
Na região mais sombria a que lhe dediquei?
E ainda assim te julgas grandioso,
como se o universo girasse no seu dorso?
Ou ainda o Papa da absolvição,
em troca de gratificação?
Por que Bonifácio?
Não sabias que sou poeta,
com poderes de profeta,
e veneno no coração?
Mas agora que estás no inferno,
desejo que queimes no fogo:
o mesmo que ameaçaste meu corpo,
viu, Bonifácio?

Cada cousa não é o que é

Cada cousa é o que é se não pudermos transformá-la
E nada é o que é quando tudo se mascara
E nada basta, porque nunca bastará
O menino que me olhava
Não sabia o que sentia
Contornei seus olhos de anjo
Ausência de ser humano
Estranha vida sem dono
Encurtaram o caminho dos seus braços
Não haveria mais abraços
Fiquei em desordem
Precisava entender o que via
Senti paralisia
Quando se realmente vê,
as palavras somem.

Cansaço


O que me limita é esse cansaço
Cansaço das coisas bobas da vida
e das importantes não-vividas.
Cansaço de ter hora, de passar da hora, de viver sem hora.
Cansaço de saber o que é isto ou aquilo,
se fará sol ou chuva, se me arrisco ou fico parada.
Cansaço, puro cansaço.
Cansaço de ter mais sentimentos e menos sentidos.
Cansaço dos desentendimentos insuportavelmente longos,
dando ao tempo a responsabilidade de resolvê-los.
Coitado do tempo, esse velho senhor que tudo resolve quando passa e que às vezes passa e nada resolve.
Cansaço de ser avaliada sem critério, dessa onda de mistério.
Cansaço de não acreditar
Cansaço de mim mesma
Cansaço familiar – essa corrente umbilical que estica e afrouxa em um ioiô de sentimentos confusos.
Cansaço de ter que ser melhor, igual,
cansaço de ser menor.
Cansaço, tanto cansaço...
Cansaço de guardar na memória tudo o que não posso mais viver.
Cansaço que só não pode me tirar o ofício de escrever,
pois não saberia mais como viver.
Ah cansaço, um dia me levarás,
e aí, descansaremos.

Bastidores

Tornaste tão secundário
quanto à platéia de uma tragédia grega
Coloco minha ira em cena
aos deuses e a Sêneca.

És um ser de bastidor
que dos dedos a cortina escorrega
Foste sempre um sofredor
sem saber que na alma carrega.

Sofro a derrota triunfal
Do palco saio sem acenar
Atrás da Medéia sou normal
Deixo-te minha porção envenenar.

Para você que me lê


Não sou coisa intraduzível,
muito menos convincente
Não fiz faculdade de letras,
meu português é deficiente
Mas gosto das palavras,
e de pensar que, sem elas, não pensaria
Não me encaixo em nenhuma categoria

Escrevo palavras simples,
fáceis em sua grande maioria;
pois a linguagem dos sentimentos
é igual para os letrados,
e os endividados do saber
Pode se aproximar e apropriar,
cedo minha alma e minha história
Sente em minha cadeira,
é igual à sua em algum lugar
Meus sentimentos, com certeza, já foram sentidos pelos seus:
já acertamos e erramos nas escolhas,
fomos solidários e caímos no conto do vigário
Nascemos inocentes, outras vezes indecentes e, por fim, coerentes
Portanto veja:
somos tão parecidos...
Pegue o lápis a sua frente,
escolha um caderno diferente,
e verá que o poema surge do movimento, no momento
da beleza, da forma e do sofrimento.
Vamos, experimente.